Mãe. Inquieta. Lésbica. Foda-se. ▶ #Herstorytelling

Por um recorte de gênero no ativismo pelo fim da violência contra as crianças

Este post é uma continuação do post Um recado para o ativismo pelo fim da violência contra as crianças.

No percurso que trilhei em busca de compreender a história do meu corpo, da minha mente e das minhas emoções, me deparei com a síndrome da salvação. Creio que esse foi um dos meus sentimentos mais urgentes quando eu ainda era criança: eu precisava salvar meu pai do alcoolismo e a minha mãe do meu pai. Sentia visceralmente que essa era a minha missão nesse mundo, ser boazinha, dar a outra face, ensinar por meio de amor que aquilo que eles faziam comigo estava errado.

– Pai, você me ama?

– Sim, filha, amo!

– Então prove parando de beber.

Eu tinha cinco anos quando fiz a ele esse pedido, de repente, no meio de uma tarde qualquer. Cinco. C-i-n-c-o. Sentado no degrau que separava o quintal da cozinha, ele nada respondeu. Apenas gargalhou. Gargalhou alto, daquelas gargalhadas gostosas de quem acha muito engraçado o que acabou de ouvir, como se eu pedisse algo extremamente fora da realidade. Como se por trás do meu pedido, eu não estivesse com o objetivo de salvar a mim, a minha mãe, ele mesmo, a minha família dos surtos de violência dele, de quando ele bebia. Mas isso não foi suficiente para que eu “caísse na real” e entendesse que ele não amava porcaria nenhuma, que ele amava em mim apenas seu código genético, que ele não via em mim a humana que eu era e sim uma criança, pior do que criança, uma menina. A menina que ele não queria que tivesse nascido. Ele queria um menino. E, depois do meu nascimento (do qual ele não participou nem levando minha mãe em trabalho de parto ao hospital pois colocou o trabalho – a carreira – como prioridade), melhor seria se tivesse abandonado a minha mãe, pois ela não teria sido obrigada a limpar vômito de bêbado com os pontos da episiotomia recém costurados, provavelmente os pontos não  teriam inflamado, e ela não teria sido internada com uma infecção durante três dias que secou seu leite e nos separou.

Da minha mãe, nessa idade de cinco anos, me recordo de uma noite em que ambos discutiam na cozinha, ele gritando, ela respondendo, dizendo que ia embora. Ela simulou ter ido. Ela simulou ter me deixado. Ela simulou o meu abandono com ele, o cara que não ia me alimentar, o cara que não ia parar de beber, o cara que batia nela, batia em mim, o chefe de família que não se importava. Em sua simulação ela não me levou consigo. E eu entrei em desespero. Chovia. Implorei para o meu pai pegar seu fusca e ir atrás dela para buscá-la. Gotinha de água escorrendo no vidro…  traga minha mãe de volta para mim, sim? Quando voltamos, ela estava sentada no jardim, esperando por nós para que a porta fosse aberta. Lembro de seu rosto banhado em lágrimas e de como, por não ter com quem conversar, ela acabava contando pra mim os absurdos que se passavam entre eles. Ela era uma mulher sozinha. Sua mãe havia morrido quando eu tinha um ano e três meses, em pleno puerpério, devido a um mioma no útero. Seus familiares não se importavam com ela. Na cabeça dela, era se julgava fraca, incapaz de trabalhar pelo próprio sustento, incapaz de deixar o marido violento para trás. Eu é que tinha de ser forte. Eu é que tinha de segurar a barra. Eu é que tinha de me importar com seus sentimentos enquanto ninguém, ninguém mesmo, se preocupava com os meus. Cinco anos.

É impossível não pensar a violência contra as crianças com recorte de gênero. Uma coisa, para mim, está completamente ligada à outra. Mais do que ligada: uma é consequência da outra. Eu fui vítima de todos os tipos imagináveis de violência na infância, vindas de diversas fontes, as mais reincidentes (físicas e emocionais) vindas do interior da família, outras vindas de círculos sociais próximos, como as violências sexuais. Ninguém me protegeu. Ninguém me notou. E eu ainda tinha aquele sentimento de ter de salvar a família da desgraça que já existia antes mesmo de eu ter nascido. Tanto minha mãe quanto meu pai errou em me espancar. Mas a violência de ambos não pode ser comparada. Do ponto de vista da criança que apanha, são duas violências iguaizinhas, apanhar de qualquer um dos genitores dói, traumatiza. E é por isso mesmo que a gente tende a imaginar que sejam duas violências iguais. Mas não são. A violência do pai é a violência da dominação pura e simples. A violência da mãe é a violência de sobrevivência. A violência de quem não suporta mais, de quem não vê saída, de quem quer entregar os pontos, de quem está cansada demais para refletir, tomar decisões e partir. Na minha pele, ambas violências me traumatizaram. Mas eu cresci sem conseguir compreender a estrutura que sustentava toda aquela realidade à qual eu estava submetida e isso gerou em mim um sentimento urgente de revolta contra a minha mãe. Aquela de quem eu esperava ser amada. Porque eu era aquela pra quem ela desabafava e eu achava que eu poderia fazer o mesmo quando precisasse. A decepção da não reciprocidade do amor de minha mãe me transtornou. O meu amor não foi capaz. Não foi capaz de fazê-la enxergar que ela teria em mim um ponto de apoio sempre que precisasse. Um cafuné na cabeça. Uma massagem nas costas. Carinho no sovaco. Meu amor não foi suficiente.

Com o meu pai no controle, o amor entre minha mãe e eu era impossível. Ela a transtornava. Chama-se identificação com o agressor a perpetuação do ciclo de violência. Está em Anna Freud, em um livro por ela escrito em 1936, cujo nome é “O ego e os mecanismos de defesa”. A identificação com o agressor é um mecanismo de defesa. Para livrar-se da violência, o corpo torna-se violento. Mas como não é possível que uma mulher lute com um homem de igual para igual em uma sociedade patriarcal, em uma sociedade em que ser mulher é ter sido submetida a processos feminilizantes de enfraquecimento físico e mental, esse mecanismo é internalizado, provocando o auto-ódio, a auto depreciação (sentimento de inaptidão) e, no caso das mães, as crianças acabam se tornando uma descarga da violência, já que a criança não pode revidar. Sem dispor dos meios para refletir politicamente a própria situação e sem dispor de apoio para sair da situação de abuso, as mulheres se identificam com seus agressores do passado e do presente e repetem o ciclo. Já os homens, repetem a violência porque sabem que ganham com ela, que retiram da violência muitos benefícios. Eles sabem que por meio da violência eles mantêm as mulheres com medo de ir embora. Eles sabem que por meio da violência eles mantêm as mulheres como empregadas que cozinham, lavam, passam e se responsabilizam totalmente pelos cuidados com os filhos enquanto eles seguem tranquilamente suas carreiras.

Esta é a derradeira resposta.

“Como os pais e mães não enxergam que a violência contra as crianças não educa e que eles estão simplesmente repetindo, sem refletir, aquilo que foi feito com eles quando eles eram crianças?”

Simples: porque eles não batem para educar. Pais e mães não batem para educar nunca. O argumento de que se bate para educar é falacioso, é uma desculpa que eles dão quando têm seus comportamentos violentos confrontados por outros adultos. Os pais sabem muito bem por que batem. Eles batem porque podem. Não, eles não estão cansados, porque eles não passam tempo suficiente isolados com as crianças a ponto de ficarem emocionalmente e fisicamente esgotados, eles não são responsabilizados por absolutamente nada no que concerne a educação de seus filhos, a sociedade enaltece qualquer homem que oferece um mínimo de sustento aos filhos, homem trabalhador, cidadão de bem, honrado, de caráter ilibado, paizão, bom pai, uau, como se isso não fosse parte da obrigação de qualquer pessoa que fez um filho, independente do sexo. Os homens não batem em suas crianças porque estão cansados. E eles não se importam em quebrar o ciclo porque eles se beneficiam dessa violência e não são mais alvo dela. Os homens deixaram de ser alvo de violência faz tempo. Depois de adultos eles não são mais violados (estou falando dos homens brancos pois é este o meu lugar de fala, os negros continuam sendo mortos pela polícia, não posso deixar de frisar). Eles são os violadores invioláveis. E batem nos seus meninos porque seus filhos homens se tornarão homens que um dia deixarão de ser violados para serem violadores. E batem em suas meninas pois elas precisam ser corrigidas, nasceram erradas e precisam ser femininas, dóceis, bem comportadas, assexuadas, limpas, silenciosas, discretas, perfeitas, porque é assim que deve ser, é assim que a história conta que deve ser, e ele está aqui para isso, para legislar sobre os corpos das mulheres, o pai está aí pra isso, para ser a figura de deus na terra. Quem ousa dizer que as mulheres batem pelos mesmos motivos que os homens?

Eu, que possuo dentro de mim uma menina que teve sua dignidade ferida tanto pela mãe quanto pelo pai, afirmo, convicta: mulheres não batem pelos mesmos motivos que os homens. A violência contra as crianças merece atenção, merece intervenção imediata, independente do sexo de quem a comete. As crianças precisam ser protegidas. E os violadores dos direitos das crianças devem, sim, ser punidos pelos seus atos. Mas o histórico psíquico das mulheres submetidas à violência desde a infância, que se repete no casamento, deve ser levada em conta para determinar como a pena deve ser cumprida. Adoraria se, quando eu fosse criança, uma instituição abordasse a minha mãe e dissesse a ela que o que ela faz está incorreto, que oferecesse a ela cursos sobre a posição das mulheres na sociedade e uma terapia que possibilitasse a ela entrar em contato com todo o ódio que, de tanto ela reprimir, acabou engolindo tanto ela quanto a mim. A responsabilidade pela violência contra as crianças é o ódio. O ódio que vem dos homens para as mulheres. Que elas internalizam e recalcam e destrói a relação mais preciosa que duas pessoas podem ter na vida. A relação entre um corpo que já abrigou outro corpo.

Parafraseando Alice Ruiz, depois que eu abriguei outro corpo, meu coração não suporta o pouco. E eu não suporto mais as migalhas como resposta para os motivos da violência pelas quais o meu corpo passou. É por isso que eu escrevo. É por isso que eu comecei a escrever, muito pequena. E é por isso que eu não vou me intimidar por quem tenta me barrar. Quem tenta me barrar por não conseguir assumir pra si mesma que homens e mulheres ocupam posições distintas na sociedade, posições hierárquicas em que masculinidade é dominação e feminilidade é submissão, e que isso afeta absolutamente tudo o que acontece a nossa volta, inclusive a violência contra as crianças, vai precisar comer muito arroz e feijão pra me calar. Nem meu pai conseguiu.

Tenta a sorte.

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Pretendo escrever sobre a síndrome da salvação no próximo post. Volte em breve! 😉

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OBS: Creio que um recorte de etnia precise ser feito a respeito disso (aliás, a respeito de TUDO), porém não me sinto apta e creio que nunca serei para tal, afinal, como branca, não estou isenta de reproduzir racismo, mesmo “na melhor das intenções”. Entendo que me beneficio, mesmo que não queira, de toda a história de exploração que a supremacia branca impôs ao povo preto, da mesma forma que todo homem se beneficia da história de exploração que a misoginia impôs às mulheres. Portanto, limito-me ao meu lugar de fala e, caso você queira escrever a respeito e não tenha um blog próprio, é só avisar nos comentários e eu entro em contato.

 

2 Respostas para “Por um recorte de gênero no ativismo pelo fim da violência contra as crianças”

  1. O que significa viver em um país cujo slogan é Pátria Educadora? | M.I.L.F. WTF?

    […] https://milfwtf.wordpress.com/2015/03/12/por-um-recorte-de-genero-no-ativismo-pelo-fim-da-violencia-…, que são, sim, relacionados ao modelo de família patriarcal em que os homens se sentem proprietários da mulher e dos filhos – ou seja, exercem o pátrio poder -, as mulheres são responsáveis pela vigilância moral dos filhos e os filhos não são nada além de uma continuação genética dos pais, sem direito à própria personalidade, sem direito à dignidade humana. Portanto, para que o debate sobre a Pátria Educadora abarque a profundidade necessária, precisamos transformá-lo num debate sobre a Mátria Educadora. E este tipo de debate, minhas caras, não vai vir do governo, nem das escolas, nem das Secretarias da Educação, nem das Academias, nem do Feminismo. Pelo contrário: ele vai ser abafado por essas esferas sociais e políticas. Esse debate, minhas amigas, precisa ser trazido a tona pelas mães. Por nós! Quando nos organizaremos para isso? […]

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